sexta-feira, 4 de janeiro de 2013
ESTRATÉGIAS DE IMOBILISMO DE NEGROS E NÃO-NEGROS NO BRASIL
Fonte: http://kilombagem.org/miscigenacao-e-democracia-racial-mito-e-realidade-clovis-moura/
Esta estratégia discriminatória contra o elemento negro não surgiu porém com a chegada dos imigrantes europeus na base do trabalho livre. Na própria estrutura escravista já havia um processo discriminatório que favorecia o homem livre em detrimento do escravo. De todas as profissões de artesãos e artífices, eles foram sendo paulatinamente excluídos ou impedidos de exercê-las. Manuela Carneiro da Cunha escreve com propriedade:
Todas essas profissões eram igualmente desempenhadas por libertos e por livres, e certamente houve em certas épocas concorrência acirrada das várias categorias por elas. Um decreto de 25 de junho de 1831, por exemplo, proibia “a admissão de escravos como trabalhadores ou como oficiais das artes necessárias nas estações públicas da província da Bahia, enquanto houverem ingênuos que nelas queirão empregarse”. (Nabuco Araújo, v. 7, 328-9, e Colleção das Leis do Império, 1830:24). Deve-se ter em conta que os escravos representavam não os seus próprios interesses, mas os de seus senhores, que procuravam ocupar totalmente o mercado de trabalho. (…) Em 1813 e 1821, os sapateiros do Rio protestaram através da sua Irmandade) contra o uso do trabalho escravo na manufatura e venda de sapatos (M. Karasch, 1975:388). Brancos brasileiros, crioulos e africanos libertos, além de escravos de ganho, competiam no mercado do trabalho entro si com os estrangeiros, europeus que vinham para a Corte (…) Houve também algumas tentativas mais ou menos bem-sucedidas de monopolizar certos setores, por parte dos escravos libertos urbanos. Sabemos de alguns exemplos. Um desses monopólios era o dos carregadores de calo no Rio do Janeiro do século-XIX: os negros minas, escravos do ganho ou libertos, tinham aparentemente se apropriado do ramo. Era um serviço pesadíssimo, que implicava deformidades e uma esperança de vida reduzida”‘
Como vemos, à medida que a sociedade escrava se diversificava e se urbanizava, ficava mais complexa internamente a divisão do trabalho e isto produzia conflitos ou atritos nos seus diversos setores de mão-de-obra. A estrutura ocupacional dessa época, na medida que passava por um processo de diferenciação econômica, criava mecanismos reguladores capazes de manter os diversos segmentos que disputavam esse mercado de trabalho nos seus respectivos espaços.
A isto se contrapunham mecanismos criados pelos próprios escravos no sentido de equilibrar a divisão do trabalho; os cantos, em Salvador, foram um exemplo.
Segundo Manuel Querino:
Os africanos, depois de libertos, não possuindo oficio e não querendo entregar-se aos trabalhos da lavoura, que haviam deixado, faziam-se ganhadores. Em diversas partes da cidade reuniam-se à espera de que fossem chamados para a condução de volumes pesados ou leves, como fossem: cadeirinha de arruar, pipas de vinho ou aguardente, planos etc. Esses pontos tinham ó nome de canto e por isso era comum ouvir a cada momento: chame ali um ganhador no canto. Ficavam eles sentados em tripeças a conversar até serem chamados para o desempenho de qualquer misteres.
(…) Cada canto de africanos era dirigido por um chefe a que apelidavam capitão restringindo-se as funções deste a contratar e dirigir os serviços e a receber os salários. Quando falecia o capitão tratavam de eleger ou aclamar o sucessor que assumia logo a investidura do cargo.
Nos cantos do bairro comercial, esse ato revestia-se de certa solenidade á moda africana: Os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia em um dos trapiches da Rua do Julião ou do Pilar, enchiam-na de aguado mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito ou dez etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa e sobre ela montava o novo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente.
Já no período escravista, portanto, havia uma tendência a se ver no negro escravo um elemento que devia ser restringido no mercado de trabalho. Os motivos alegados, as razões apresentadas, apesar de aparentemente serem compreensíveis, o que conseguiram era — como se queria — transformar o trabalho escravo, e, em muitas circunstâncias o negro liberto, em mão-de-obra eternamente não-qualificada e que, por uma série de razões, não podia ser aproveitado.
Se estes mecanismos foram estabelecidos empiricamente durante o escravismo, após a Abolição eles se racionalizaram e as elites intelectuais procuraram dar, inclusive, uma explicação “científica” para eles, como veremos adiante.
Em determinada fase da nossa história econômica houve uma coincidência entre a divisão social do trabalho e a divisão racial do trabalho. Mas através de mecanismos repressivos ou simplesmente reguladores dessas relações ficou estabelecido que, em certos ramos, os brancos predominassem, e, em outros, os negros e os seus descendentes diretos predominassem. Tudo aquilo que representava trabalho qualificado, intelectual, nobre, era exercido pela minoria branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não-qualificado, braçal, sujo e mal remunerado era praticado pelos escravos, inicialmente, e pelos negros livres após a Abolição.
Esta divisão do trabalho, reflexa de uma estrutura social rigidamente estratificada ainda persiste em nossos dias de forma significativa. Assim como a sociedade brasileira não se democratizou nas suas relações sociais fundamentais, também não se democratizou nas suas relações raciais. Por esta razão, aquela herança negativa que vem da forma como a sociedade escravista teve início e se desenvolveu, ainda tem presença no bojo da estrutura altamente competitiva do capitalismo dependente que se formou em seguida. Por esta razão, a mobilidade social para o negro descendente do antigo escravo é muito pequena no espaço social. Ele foi praticamente imobilizado por mecanismos seletivos que a estratégia das classes dominantes estabeleceu. Para que isto funcionasse eficazmente foi criado um amplo painel ideológico para explicar e/ou justificar essa imobilização estrategicamente montada. Passado quase um século da Abolição a situação não mudou significativamente na estrutura ocupacional para a população negra e não-branca.
De acordo com o Censo de 1980, de 119 milhões de brasileiros, 54,77% se declararam brancos; 38,45% pardos; 5, 89% pretos e 0,6.1% amarelos. Podemos afirmar, portanto, que são descendentes de negros ou índios 44,34% da população. Por outro lado, ao invés do branqueamento preconizado pela elite branca essa proporção vem aumentando nas últimas décadas, pois ela era de 36% em 1940, 38% em 1950 e 45% em 1980, usando o IBGE a mesma metodologia na pesquisa.
Mas a população negra e não-branca de um modo geral não se distribui proporcionalmente na estrutura empregatícia e outros indicadores da sua situação econômico-social no conjunto da sociedade. Pelo contrário. De acordo com o recenseamento de 1980 era esta a situação dos principais grupos étnicos quanto à sua ocupação principal.
Não precisamos argumentar mais analiticamente para constatarmos que os negros e não-brancos em geral (excluindo-se os amarelos) são aqueles que possuem empregos e posições menos significativas social e economicamente. Por outro lado, repete-se, cm 1980, o mesmo fato que Florestan Fernandes registra ao analisar uma estatística de 1893: O negro é o segmento mais inferiorizado da população. Em 1893 ele não comparece como capitalista, Em 1980 ele comparece apenas com 0,4% na qualidade de empregador. Isto demonstra como os mecanismos de imobilismo social funcionaram eficientemente no Brasil, através de uma estratégia centenária, para impedir que o negro’ ascendesse significativamente na estrutura ocupacional e em outros indicadores de mobilidade social. Como vemos, os imigrantes de 1893 estavam numa posição melhor do que os negros brasileiros, atualmente, segundo os dados do Censo de 1980. Isto se reflete de várias maneiras e funciona ativamente na sociedade competitiva atual.
Criaram-se, em cima disto, duas pontes ideológicas: a primeira é de que com a miscigenação nós democratizamos a sociedade brasileira, criando aqui a maior democracia racial do mundo; a segunda de que os negros e demais segmentos não-brancos estão na atual posição econômica, social e cultural a culpa é exclusivamente deles que não souberam aproveitar o grande leque de oportunidades que essa sociedade lhes deu. Com isto, identifica-se o crime - e a marginalização com a população negra, transformando-se as populações não brancas em criminosos em potencial. Têm de andar com carteira profissional assinada, comportar-se bem nos lugares públicos, não reclamar dos seus direitos quando violados e, principalmente, encarar a polícia como um órgão de poder todo-poderoso que pode mandar um negro “passar correndo” ou jogá-lo em um camburão e eliminá-lo em uma estrada. Negro se mata primeiro para depois saber se é criminoso é um slogan dos órgãos de segurança. Como podemos ver, a partir do momento em que o ex-escravo” entrou no mercado de trabalho competitivo foi altamente discriminado por uma série de mecanismos de peneiramento que determinava o seu imobilismo. Além disso privilegiou-se o trabalhador branco estrangeiro, especialmente após a Abolição, o qual passou a ocupar os grandes espaços dinâmicos dessa sociedade. Surge, como um dos elementos dessa barragem, a ideologia do preconceito de cor que inferioriza o negro em todos os níveis da sua personalidade. Esse preconceito que atua como elemento restritivo das possibilidades do negro. na sociedade brasileira poderá ser constatado: a) no comportamento rotineiro de grandes faixas brancas da população em todo o território nacional b) nas relações inter e intra familiares; c) no critério seletivo para a escolha de empregos e ocupações; d) nos contatos formais entre elementos de etnias diversas; e) na filosofia de indivíduo, grupos, segmentos e instituições públicas ou privadas; f) na competição global entre camadas que compõem as classes sociais etnicamente diversificadas da sociedade brasileira. Este conjunto de mecanismos ideológicos, inconscientes para a maioria, mas elaborados por uma elite racista, refletir-se-á no processo concreto da seleção econômica dos negros. A instrumentação dessa ideologia deve ser vista como um elemento componente da marginalização de grandes continentes populacionais negros.
Pesquisa realizada e concluída em 1979 — portanto apenas um ano antes da divulgação do censo de 1980 —, pelo Departamento de Estudos e Indicadores Sociais (Deiso), chega à conclusão que não deixa dúvidas quanto a este mecanismo selecionador negativo contra o negro no mercado de trabalho. Ainda acompanhando-se, por agora, apenas o indicador de rendimento familiar, conclui a pesquisa:
Com relação aos indicadores levantados, os diferenciais são maiores entre os brancos e negros nas famílias de rendimento familiar de mais de três salários mínimos e nas famílias urbanas. A distribuição das famílias por grupos de rendimento mensal familiar nos indica que 60% das famílias têm rendimentos de até três salários mínimos, sendo que a presença das famílias pretas e pardas neste grupo é de 80,5% e 74,2%, respectivamente, e a das brancas de 50,4%.
O rendimento médio familiar per capita, em 1976, das famílias brancas era de Cr$ 1 087,40 e das famílias negras (pretas e pardas) respectivamente Cr$ 383,10 e Cr$ 548,90, correspondendo o rendimento das famílias pretas e pardas a 35% e 50%, respectivamente, do rendimento familiar per capita das famílias brancas.
No setor da divisão do trabalho a mesma pesquisa registra os seguintes resultados quanto à posição do negro:
Brancos e negros têm uma inserção desigual na estrutura ocupacional. Os negros encontram-se mais concentrados (aproximadamente 90%) que os brancos (cerca de 75%) nas ocupações manuais, as de menor nível de rendimento e instrução. Assim, enquanto 8,5% dos brancos têm ocupações de nível superior apenas 1,1% dos pretos e 2,7% dos pardos neles são absorvidos e, considerando as ocupações de nível médio, os percentuais encontrados são de 14,6% para os brancos, 3,6% dos pretos e 7,2% dos pardos.
Como vemos, na estrutura ocupacional, como em outras, a situação do negro é sempre negativa, sempre de inferiorização em comparação com o segmento branco da nossa população. Outra pesquisa como a do IBGE, numa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, chega a conclusão idêntica.
Como vemos, a estratégia racista das classes dominantes atuais, que substituíram os senhores de escravos, conseguiu estabelecer um permanente processo de imobilismo social que bloqueou e congelou população negra e não-branca permanentemente em nível nacional.
Nota: Se desejar se informar de todo documento é só acessar o linque http://kilombagem.org/miscigenacao-e-democracia-racial-mito-e-realidade-clovis-moura/
Com esta postagem esta página teve a intenção de dar uma visão rápida de como se construiu o caminho que conduziu negros e não-negros à sua realidade atual após o final da monarquia brasileira do 2º Império e após o advento da República Brasileira.
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